Sabbath Assembly e o Apocalipse hippie

Por volta de 1963, num instituto de cientologia em Inglaterra, Robert DeGrimston Moore and Mary Ann MacLean conheciam-se e perdiam horas em longas conversas. Rapidamente perceberam que aquilo que os unia era bem mais do que aquilo que os ligava às ideias de L. Ron Hubbard e pouco depois entrariam em ruptura com as práticas cientológicas. Influenciados pelas ideias de Alfred Adler, um dos primeiros “dissidentes” da psicanálise freudiana, e depois de terem tido uma converseta com Deus, criavam a sua própria escola de pensamento e, em pouco tempo, já a viverem numa comuna algures nos Estados Unidos, germinava um culto apocalíptico que viria a ficar conhecido como “The Process Church of the Final Judgement”. Comunas onde a malta fazia bacanais, consumia todo o tipo de drogas e, nos tempos livres, falava com Deus, era o pão nosso de cada dia nos Estados Unidos dos anos 60. Mas esta, apesar de ter durado tão pouco tempo quanto a maior parte delas, chamou a atenção por várias razões. Para além da alegada influência que tiveram em Charles Manson, e de um símbolo que a alguns recordava a suástica nazi, a centralidade de Lúcifer e de Satanás no seu ideário rapidamente levou a que fossem catalogados como satânicos. O sensacionalismo mediático rapidamente pegou nestes aspectos do culto para semear o pânico moral e, diga-se, alguns dos seus elementos souberam aproveitar a propaganda, alimentando todo o tipo de associações a acontecimentos maléficos e a figuras caliginosas (a já referida ligação a Charles Manson, por exemplo, assim como as alegadas ligações a grupos nazis). Uma história com hippies satânicos à espera do Apocalipse é suficientemente entusiasmante, e põe-nos logo a imaginar um filme do cacete, mas a coisa não fica por aqui. Parte do fascínio em torno do culto que levou a que suscitasse curiosidade e interesse ao longo dos anos, em figuras e bandas tão diferentes como Genesis P-Orridge e os próprios Throbbing Gristle, os Funkadelic ou, mais recentemente, no hardcore, os Integrity (ficam a saber que é daí que vem o título do álbum Humanity is the Devil), reside na peculiar veneração simultânea de Jesus Cristo e Satanás. O culto “processeano” (assim denominado para se distinguirem da teologia processual) assenta em grande medida, e muito sinteticamente, na união destas entidades opostas e na crença de que no Juízo Final ambas conjugarão esforços, cabendo a Cristo ditar a sentença e a Satanás executá-la. Lúcifer e Jeová, ambos igualmente opostos e ambos igualmente condenados à união, completam o quaternário que organiza a mundividência processeana e que procura representar os principais extremos que definem o indivíduo.

A história da The Process Church of the Final Judgement reflecte, com particular clareza, muitos dos factores da rápida emergência e declínio da cultura hippie e algumas das suas contradições: excesso de drogas, delírios místicos, uma propensão para a criação de gurus demasiado extasiados com o seu poder e rebanhos desejosos de ser comandados, uma narrativa de amor e comunhão a resvalar para uma espiral auto-destrutiva e niilista, entre outras coisas. As ideias, as figuras e as acções da The Process Church of the Final Judgement permitem-nos perceber o percurso de um movimento que tanto inspirou uma narrativa pacifista colorida por flores e sorrisos inebriados, como derramou sangue e violência através de figuras sinistras como Charles Manson ou acontecimentos tão caóticos quanto o célebre Altamont Speedway Free Festival, em 1969.

Mas, deixando os hippies de lado, e voltando um pouco atrás, é a mensagem da The Process Church of the Final Judgment e o seu carácter extremo, para alguns, ou simplesmente inusual ou idiota para outros, que faz com que esta vá resistindo às falhas da memória colectiva e seja continuamente recordada por diferentes meios. Um dos exemplos mais bem sucedidos desse resgate é recente e chama-se Sabbath Assembly. Por volta de 2009, David Nuss e Jamie Myers, a propósito do lançamento de um livro sobre o culto (Love, Sex, Fear, Death: The Inside Story of the Process Church of the Final Judgement) prestes a ser lançado por um dos seus ex-membros, juntaram-se para promover a obra e divulgar a teologia da igreja através da música. Um dos pontos de partida foi a existência de um livro com hinos usados nos serviços litúrgicos que nunca tinham sido gravados. Com os hinos musicados e enriquecidos pela voz de Jex Thoth, a recepção ao projecto foi positiva o suficiente para que este crescesse para lá do propósito inicial e rapidamente surgisse a ideia de gravar um álbum. Assim nasciam ofocialmente os Sabbath Assembly, com Restored to One, lançado em 2010, e exclusivamente composto por essas primeiras interpretações dos hinos da igreja. Seguir-se-iam mais três álbuns, dois deles persistindo na missão de espalhar a mensagem que nos incentiva a aceitar o lado luzidio e o lado obscuro da vida e um deles, lançado este ano, em que, apesar de ser a teologia a dominar o conteúdo lírico da banda, vemos cessar a dedicação exclusiva à difusão dos textos e mensagem desta igreja.

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No geral, o som dos Sabbath Assembly é atravessado por um feeling bem 60’s’/70’s, com as influências de algum rock psicadélico e hard-rock, enriquecidas por uns pozinhos de gospel, todas no sítio. As composições são bastante melodiosas e bem arranjadas, intensificadas pela projecção dramática das vozes predominantemente femininas (depois de Restored to One, as vozes têm estado a cargo de Jamie Myers) e pelo groove do órgão. Em Ye Are Goods, o segundo álbum, editado em 2012, a frequência de arranjos acústicos nas guitarras deu à banda um som mais folk, e Quaternity, o álbum de 2014, apresenta-nos a primeira malha em que é a distorção quem comanda (“I, Satan”). O recém-lançado Sabbath Assembly, para além do mencionado abandono da causa processeana, assinala uma viragem para um som mais pesado. A bateria tem uma cadência bem mais agressiva e as guitarras são possuídas pelo peso e sujidade da distorção, acompanhadas aqui e ali de uns solos muita azeiteiros, como se a banda estivesse cheia de pressa para sair dos anos 60 e 70 e entrar nos anos 80, deixando os cabelos ornamentados com florzinhas dar lugar a umas grandas cabeleiras a esvoçoar ao vento. Ainda só ouvi umas duas ou três vezes e, apesar de indiciar uma suposta evolução positiva na estética capilar, o álbum parece-me uma boa porcaria. Cliché por cliché saiam-se bem melhor a passear entre o rock psicadélico e os arranjos acústicos, para além de que para cantar loas a Satanás no meio duma barulheira não faltam aí bandas. Parte da magia dos Sabbath Assembly estava, precisamente, em fazê-lo num tom soft, com vozes angelicais e um som limpinho e harmonioso, ao mesmo tempo que a malta dava as mãos à volta duma fogueira ou dava uns abraços com um sorriso nos lábios (estou a brincar, estou a brincar).

Enfim, mais a sério, parte do interesse de Sabbath Assembly devia-se, por um lado, à excelente ideia de fazer da banda um projecto conceptual entregue à exploração deste universo meio bizarro e, por outro lado, à capacidade que tiveram de demonstrar que a mensagem da The Process Church of the Final Judgement não perdeu nenhum do seu extremismo hoje em dia, em que o agnosticismo, o ateísmo ou até o satanismo se tornaram relativamente mais inofensivos – para não dizer banais – neste imenso cantinho do mundo que habitamos. Basicamente, aceitou-se gradualmente uma normalidade em que há malucos que veneram Cristo e em que há malucos que veneram Satanás, mas que, pelos vistos, ainda não há espaço para a devoção aos dois ao mesmo tempo, mesmo que venha embrulhada numa bonita história de amor. Como nos dizem os Sabbath Assembly, em “Let Us All Give Praise and Validation” (Ye are Gods), “Christ said: love your enemies. Christ’s enemy was Satan and Satan’s enemy was Christ. Through love, enmity is destroyed. Through love, saint and sinner destroy the enmity between them. Through love Christ and Satan have destroyed their enmity and come together for the end”.

(Jex Thoth estreia-se em Portugal, no dia 10 de Outubro, no RCA Club, muito bem acompanhada pelos Cult of Youth).

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A tortura do som

Numa entrevista de meados do ano passado ao Repubblica XL, Arto Lindsay, vocalista e guitarrista dos DNA, um dos expoentes da no wave nova-iorquina na passagem dos anos 1970 para os anos 1980, revelou uma insólita história. Durante o sequestro do general da NATO James Lee Dozier, levado a cabo em Dezembro de 1981 pelas Brigate Rosse, os brigadistas forçavam o sequestrado a ouvir um disco dos DNA, num volume altíssimo, através de um par de headphones. Segundo Lindsay, não se tratara propriamente de uma forma de tortura, mas de uma estratégia para que o general não ouvisse as conversas dos seus raptores. O entrevistador não escondeu a sua surpresa e perguntou-lhe como tinha tido conhecimento do episódio, ao que Lindsay respondeu que tinha ouvido uns rumores na altura, acabando por reconhecer que não passava de uma lenda. Uns meses mais tarde, o entrevistador, Valerio Mattioli, publicou na Vice um artigo em que procurava desenvolver o tema, especulando sobre o sentido que poderia ter uma hipotética relação entre a no wave e a militância política da esquerda autonomista italiana no final dos chamados «anos de chumbo». O esforço revela-se um pouco ingrato e essas ligações, incluindo o episódio do disco dos DNA no rapto de Dozier, são tudo menos evidentes.

Mas a utilização da música, e em geral do som e de dispositivos sonoros, para torturar prisioneiros e para todo o género de manobras militares é uma realidade que vem de longe. Ficou, por exemplo, célebre o episódio da rendição de Manuel Noriega quando, no final de 1989, na sequência da invasão do Panamá pelos Estados Unidos, se refugiou no edifício da embaixada do Vaticano. As tropas norte-americanas cercaram o edifício e, alguns dias depois, instalaram um poderoso sistema sonoro direccionado para a embaixada e a emitir permanentemente. O objectivo era claro: pressionar Noriega e a sua entourage barricada, mas também os próprios elementos da embaixada. Como o que interessava era a projecção sonora, o conteúdo que era projectado era relativamente indiferente, pelo que as faixas que tocavam eram as da emissão da rádio das tropas estacionadas no Panamá, cuja playlist era escolhida pelos próprios soldados. O resultado foi, em certo sentido, surpreendente, não tanto por casos como o óbvio «Panama», dos Van Halen, mas por canções bastante improváveis naquele contexto. É o caso, por exemplo, de «War Pigs», dos Black Sabbath, uma canção antiguerra que tanto podia ser usada para criticar regimes apoiados (e posteriormente caídos em desgraça…) pela CIA e os Estados Unidos como, por maioria de razão, a própria CIA e os Estados Unidos. Noriega acabou por se render já no início de Janeiro de 1990, não tendo deixado de haver quem ficasse convencido que a estratégia de «bombardeamento sonoro» desempenhou um papel essencial.

Mais recentes, e com maior impacto mediático, foram as utilizações de faixas de heavy metal para torturar prisioneiros iraquianos na prisão de Abu Grahib, em 2008, no contexto da chamada «Guerra Global contra o Terrorismo». Os Metallica foram uma das bandas usadas inicialmente, o que motivou um protesto dos próprios, não sem alguma ambiguidade. Afirmou na altura James Hetfield, vocalista e guitarrista da banda: «Parte de mim fica orgulhosa por terem escolhido os Metallica, mas a outra parte fica desapontada. Não temos nada a ver com o assunto e tentamos ser, o mais possível, apolíticos. Penso que a política e a música, pelo menos para nós, não se misturam.» Passaram então a ser usados os Demon Hunter, uma banda de heavy metal cristão. No final desse mesmo ano, um grupo de artistas lançou uma campanha contra a utilização de música para torturar prisioneiros, a campanha «Zero DB», após a divulgação de diversos casos em Guantánamo. Muitos destes casos, bem como uma investigação sobre o uso sistemático de técnicas e dispositivos sonoros pelas forças armadas norte-americanas ao longo do tempo, podem ser consultados num interessante artigo de Suzanne Cusick, publicado no número de Dezembro de 2006 da revista Trans. Revista Transcultural de Música.

Um não menos interessante artigo de Anabela Duarte sobre o tema acaba de ser publicado na Music & Politics. O foco, neste caso, é o fascismo português e o artigo trata de uma forma abrangente a «Violência Acústica e Acusmática e a Tortura no Estado Novo», sobretudo a partir do período do pós-Segunda Guerra Mundial. Anabela Duarte analisa a evolução do recurso por parte do regime fascista a um conjunto de técnicas e dispositivos sonoros no seu combate contra a oposição clandestina, desde a tortura de prisioneiros ou a perseguição política ao controlo e deturpação dos julgamentos, da relação entre os prisioneiros e os seus advogados, etc. Também neste caso avulta a relação entre a PIDE e a CIA, através de acções de formação e importação de métodos, no contexto da cooperação que a administração norte-americana mantinha com os regimes mais sanguinários na perseguição aos comunistas. Um tema que estará ainda certamente por explorar, e que Anabela Duarte aflora no final do artigo, é a forma como a música e o som tiveram também um papel na resistência política, nomeadamente no interior das prisões fascistas em Portugal.

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